domingo, 30 de março de 2014

Minha infância e a ditadura

O ano era 1978. Tinha seis anos e minha única preocupação era brincar. Ia à escola, naquela época era o pré-escolar, e estava aprendendo minhas primeiras letras, não sabia ainda escrever ou ler, mas já sentia aquela curiosidade de entender as palavras quando me deparava com elas em um gibi ou livro infantil. Claro que, com toda a inocência que marca a infância das crianças, eu não tinha a menor ideia de que vivíamos sob uma ditadura militar. Lembro até que tinha um brinquedo com o desenho dos rostos de todos os presidentes que haviam governado o país até aquele ano, e tinha de acertar uma bolinha no “alvo” para ganhar pontos. O presidente que estava no poder, Ernesto Geisel, era o mais valioso, e conseguir acertá-lo era um desafio para mim.
Então, acredito que a pedido da minha mãe, comecei a fazer desenhos para alegrar um amigo da minha tia Inês “que adorava crianças e morava longe”. Eu amava desenhar, vivia com papel na mão fazendo borboletas e menininhas e casinhas e céus estrelados e bichinhos de todas as formas e cores. Caprichava nos desenhos porque sabia que minha tia ia entregar ao amigo, que ia ficar bastante feliz com minha “arte”. Acho que me considerada mesmo importante, afinal, meu desenho estava sendo admirado por alguém que eu sequer sabia quem era!
Minha mãe recebia cartas daquele homem, e em todas elas ele abria parênteses para escrever uma mensagem carinhosa a mim. Eu sentia como se ele estivesse realmente falando comigo! Ainda tenho as cartas, mas estão tão bem guardadas que acabei esquecendo em qual das minhas "caixas de memórias" elas estão - isso é muito típico de mim!
No Natal daquele ano, esse amigo misterioso que morava longe apareceu em minha casa para me conhecer. Minhas primas também faziam desenhos para ele, mas não com a mesma frequência que eu. Então ele queria saber quem era aquela menina que lhe mandava “obras de arte” com céus muito azuis, sóis enormes e sorridentes, e estrelas gigantes, se comparadas ao tamanho das casinhas que estavam na mesma folha.
Minha memória infelizmente não me permite recordar como ele era. Mas lembro claramente de ele me dar uma caixa de bombons e um cartãozinho cor de rosa em papel vegetal com uma mensagem de Natal. Lembro também do meu encantamento em saber que aquele amigo que morava longe tinha feito a viagem para me conhecer. Que honra para uma menina de seis anos!
Não sei quando parei de mandar os desenhos. Mais velha, fui descobrir que aquele homem era irmão de uma amiga da minha tia, e estava preso por razões políticas em São Paulo. Como a irmã morava também em Piracicaba, ela pediu a minha tia – que morava na capital – para que fosse visitá-lo de vez em quando. Sei que ele acabou sendo solto, mas desapareceu tempos depois. Onde ele está agora, se está vivo ou morto, ninguém sabe.

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