O ano era 1978. Tinha seis anos e minha única preocupação
era brincar. Ia à escola, naquela época era o pré-escolar, e estava aprendendo
minhas primeiras letras, não sabia ainda escrever ou ler, mas já sentia aquela
curiosidade de entender as palavras quando me deparava com elas em um gibi ou
livro infantil. Claro que, com toda a inocência que marca a infância das
crianças, eu não tinha a menor ideia de que vivíamos sob uma ditadura militar.
Lembro até que tinha um brinquedo com o desenho dos rostos de todos os
presidentes que haviam governado o país até aquele ano, e tinha de acertar uma
bolinha no “alvo” para ganhar pontos. O presidente que estava no poder, Ernesto
Geisel, era o mais valioso, e conseguir acertá-lo era um desafio para mim.
Então, acredito que a pedido da minha mãe, comecei a fazer
desenhos para alegrar um amigo da minha tia Inês “que adorava crianças e morava
longe”. Eu amava desenhar, vivia com papel na mão fazendo borboletas e
menininhas e casinhas e céus estrelados e bichinhos de todas as formas e cores.
Caprichava nos desenhos porque sabia que minha tia ia entregar ao amigo, que ia
ficar bastante feliz com minha “arte”. Acho que me considerada mesmo
importante, afinal, meu desenho estava sendo admirado por alguém que eu sequer
sabia quem era!
Minha mãe recebia cartas daquele homem, e em todas elas ele
abria parênteses para escrever uma mensagem carinhosa a mim. Eu sentia como se
ele estivesse realmente falando comigo! Ainda tenho as cartas, mas estão tão
bem guardadas que acabei esquecendo em qual das minhas "caixas de
memórias" elas estão - isso é muito típico de mim!
No Natal daquele ano, esse amigo misterioso que morava longe
apareceu em minha casa para me conhecer. Minhas primas também faziam desenhos
para ele, mas não com a mesma frequência que eu. Então ele queria saber quem
era aquela menina que lhe mandava “obras de arte” com céus muito azuis, sóis
enormes e sorridentes, e estrelas gigantes, se comparadas ao tamanho das
casinhas que estavam na mesma folha.
Minha memória infelizmente não me permite recordar como ele
era. Mas lembro claramente de ele me dar uma caixa de bombons e um cartãozinho
cor de rosa em papel vegetal com uma mensagem de Natal. Lembro também do meu
encantamento em saber que aquele amigo que morava longe tinha feito a viagem
para me conhecer. Que honra para uma menina de seis anos!
Não sei quando parei de mandar os desenhos. Mais velha, fui
descobrir que aquele homem era irmão de uma amiga da minha tia, e estava preso
por razões políticas em São Paulo. Como a irmã morava também em Piracicaba, ela
pediu a minha tia – que morava na capital – para que fosse visitá-lo de vez em
quando. Sei que ele acabou sendo solto, mas desapareceu tempos depois. Onde ele
está agora, se está vivo ou morto, ninguém sabe.