domingo, 27 de abril de 2014

O horror bem ao nosso lado


O caso do menino Bernardo Boldrini, 11 anos, encontrado enterrado no último dia 14 em Frederico Westphalen, no Rio Grande do Sul, ainda é tema de matérias que ocupam todas as mídias. Diferente de muitos casos envolvendo crianças, que se perdem entre outras notícias de crimes, este tem diariamente atraído a atenção das pessoas pelo envolvimento da família do garoto em sua morte, mais especificamente sua madrasta, a enfermeira Graciele Ugolini, ajudada por sua amiga, a assistente social Edelvânia Wirganovicz, com possível anuência de seu pai, o médico Leandro Boldrini.
O horror quando nos deparamos com relatos de mortes infantis absurdas e cruéis muitas vezes é amainado pelo ambiente em que o menor vivia. Lemos todos os dias casos de crianças e bebês mortos por pais e até mesmo pela mãe, mas na maioria esmagadora deles os fatores álcool, drogas e falta de total estrutura básica familiar parece que ajuda-nos – se é que isso é possível – a entender o crime. “Também, num ambiente desses, claro que isso ia acontecer”, é o pensamento que vem à cabeça de muitas pessoas quando leem esse tipo de notícia.
Talvez por termos essa mentalidade a morte de Bernardo pareça tão sem sentido. Filho de um médico bem sucedido, não havia nenhum indício de que sofresse maus tratos físicos, mesmo após ter procurado o Ministério Público em janeiro pedindo para ser enviado a uma nova família, já que era negligenciado pelo pai e pela madrasta. Em uma audiência com o genitor, o juiz do caso decidiu dar ao cirurgião uma nova oportunidade para cuidar do filho, que aceitou a proposta, com certeza acreditando que seria novamente amado.
A cada vez que leio sobre o assunto, a mesma pergunta me vem à cabeça: será que se Bernardo fosse negro, pobre, filho de uma mãe com mais um monte de crianças, um pai desempregado e com problemas de álcool ou drogas, ele teria sido mantido na mesma família ao fazer o pedido de mudança à Justiça? Ou será que o juiz teria enxergado risco em mantê-lo em uma casa desestruturada?
Apesar de a cidade toda saber que o menino vivia vagando pelas ruas sempre com roupas velhas e somente podia entrar em casa quando o pai chegava do trabalho, ninguém nunca acreditou que ele estivesse correndo algum risco. Agora que ele está morto, aparecem pessoas para dizer que ele era maltratado. Por que não se manifestaram antes? A cor da madrasta a fazia diferente de uma mulher pobre que maltrata uma criança? O dinheiro do pai impedia que as pessoas o vissem como negligente?
Perguntas não trarão o menino de volta. Bernardo poderia ter sido meu ou seu vizinho. Poderia ter passado mil vezes em frente a minha casa triste, e eu não teria notado seu sofrimento. Que sua morte sirva de lição para que não nos deixemos levar apenas pela bela figura de uma família, e consigamos enxergar o mal que se encontra dentro dela. 

domingo, 13 de abril de 2014

Admirar não é estuprar


A estatística divulgada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) no último dia 4 de que 26% dos homens concordam, total ou parcialmente, com a afirmação de que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas", corrigiu uma pesquisa anunciada uma semana antes, quando essa porcentagem era de 65%. Para muitos, o novo número trouxe uma sensação de alívio. Na verdade, a estatística ainda é muito alta.
Se pararmos para pensar, isso significa que um em cada quatro homens no Brasil acredita que a roupa usada pela mulher é a causa do estupro. Esse universo pode englobar nossos familiares, amigos, colegas de trabalho, conhecidos. Por essa absurda lógica machista, a mulher que usa um vestido curto deve ser violentada sexualmente. Comentários como “se ela estava assim é porque queria chamar a atenção” são comuns quando um caso de estupro é divulgado. À roupa que a mulher estava usando, muitas vezes, é dada mais atenção ao local onde ela se encontrava, ou o horário em que o ato ocorreu. Afinal, a culpa pelo ato, pelo machismo vigente no Brasil, é da vítima. O homem, como sempre, “foi instigado” a cometer o crime.
Que a roupa seja usada para chamar a atenção é óbvio. Se não fosse assim, homens e mulheres iriam de pijama a eventos sociais, sem se importar com os olhares dos outros. Mas faz parte de todas as sociedades a vestimenta como forma de chamar a atenção do sexo oposto. Porém, existe uma diferença imensurável entre ser olhada e ser estuprada.
Ao usar um vestido curto ou blusa decotada uma mulher pode sim querer a atenção masculina. Ela pode desejar ser admirada, paquerada, cortejada, elogiada. Isso, porém, não significa que ela deseje sem tocada, acariciada em suas partes íntimas, “encoxada” ou estuprada. A mulher também tem o direito de escolher com quem quer um envolvimento físico. Ela não é obrigada a aceitar passivamente o ato sexual porque seu vestido chamou a atenção de alguém que não a atraiu fisicamente. Não será sempre não, em qualquer idioma.
Os defensores desse pensamento machista parecem se esquecer que o estupro é um ato, acima de tudo, de poder. O estuprador sente prazer em subjugar sua vítima, e não em conquistá-la. Se a roupa fosse a razão para o estupro, bebês, crianças e idosos jamais sofreriam tal tipo de violência.
Estupro também é um crime de oportunidade. Se não fosse assim, estupradores atacariam suas vítimas de biquínis em praias lotadas, e não as esperariam em locais isolados para as subjugarem.
Para quem comemorou a correção da estatística, vale lembrar que 26% ainda é um número alto. Nesse universo, até mesmo um amigo pode ser esse um entre quatro que acha que você merece ser estuprada por usar roupa curta. E pode, baseado nesse pensamento, cometer o estupro. Pense nisso.