terça-feira, 2 de junho de 2009

Estranha insensibilidade

Desde ontem a única coisa que tenho visto em todos os jornais, revistas e sites que abro são as notícias referentes ao avião que desapareceu após ter decolado do Rio de Janeiro com destino a Paris. Antes que qualquer um me critique, quero deixar claro que lamento muito pela tragédia, e me solidarizo com as famílias das vítimas. Mas a overdose de informações é tamanha, são tantas abordagens e histórias sendo levantadas que isso me lembrou uma crônica que escrevi em março do ano passado, falando exatamente sobre a estranha insensibilidade que acomete os jornalistas quando estão cobrindo qualquer incidente deste tipo. Aliás, foi a primeira crônica que escrevi em toda a minha vida. Quem já leu relembre o que pensei, e quem não leu reflita sobre o assunto.

Jornalista é um ser estranho. Enquanto todo mundo agradece a Deus, aos céus, aos santos e a todas as forças e instâncias superiores quando há queda nos níveis de violência, de epidemias e outras desgraças, o repórter e o editor se lamentam pela falta de notícia.
- O cara despencou de mais de seis metros hoje pela manhã, enquanto trabalhava em uma obra...
- Nossa, machucou muito?
- Nada, já está até na observação.
- Então não é matéria, no máximo uma nota...
Essa conversa não é imaginária. Foi ouvida um dia desses na redação, numa segunda-feira particularmente ruim de notícias. Aquele dia em que, como dizemos em linguagem jornalística, só tem “trolha”. Ou seja, só materinha, assuntos pequenos... Aquele dia em que o editor fica, no fechamento, “caçando” um assunto de impacto para colocar como manchete e com certeza, pelo menos mentalmente, xingando os repórteres. “Porra, nada para colocar na capa... O que esse bando de jornalistas fica fazendo o dia inteiro?”
O repórter também fica na “fissura” de encontrar algo impactante o dia todo.
- Oi, como é que está o plantão policial hoje?
- Tranquilo, nenhuma ocorrência de destaque.
- Putz, que merda...
- Que é isso, graças a Deus que não aconteceu nada de ruim...
- Graças a Deus para você, porque para mim é uma merda, meu chefe vai comer meu fígado...
Parei para pensar, depois de ouvir o comentário da colega sobre o infeliz que havia caído, que esse sentimento de indiferença a qualquer acidente que tenha um final relativamente bom é inerente à profissão mas, de certa forma, reflete aquilo que as pessoas buscam das notícias de jornal.
Lembrei-me de quando a Columbia explodiu. Na época era editora de Nacional e Internacional, e tinha quatro páginas em branco para preencher, em pleno sábado, dia normalmente pobre em matérias quentes, a não ser que algo muito surpreendente ocorra. Avisei a editora-chefe que a coisa estava feia e saí para almoçar. Quando cheguei, ela veio com a novidade:
- Você vai ter muito material para trabalhar: a Columbia explodiu...
- Nossa, que bom! Salvou meu dia, vou ter muita coisa para escrever e dá para encher as quatro páginas na boa, com fotos, história dos astronautas, repercussão no mundo inteiro... Graças a Deus!
Terminei a frase e me peguei parada... Graças a Deus que uma nave espacial havia explodido e matado seus tripulantes? Que insensibilidade é essa que atinge os jornalistas, que comemoram quando a desgraça é enorme para encher páginas e mais páginas de jornais e revistas?
E olha que sou uma pessoa sensível, choro assistindo filme, novela, contando história triste... Emociono-me com fatos comuns do dia-a-dia quando estou “à paisana”, mas torno-me totalmente imune ao sentimento de compaixão quando me transformo em jornalista. O que isso significa? Que penso em primeiro lugar na repercussão que a informação que tenho em mãos teria, e não nas pessoas afetadas por ela. E por que isso?
É que publicar coisa boa não dá ibope. E isso não sou eu quem fala, infelizmente a natureza humana curte uma desgraça básica. Vejo o interesse que as pessoas têm quando um crime bárbaro ocorre, uma desgraça da natureza acontece, um casal famoso se divorcia. Sim, isso também é triste, afinal envolve duas pessoas (ou mais, quando têm filhos) que se amavam e, com certeza, estão sofrendo com a situação.
Dá para mudar isso? Não sei... Estou aqui divagando sobre o assunto sem saber se quem ler meu texto vai se tornar mais sensível ou não. Aliás, não sei nem se eu mesma vou me tornar mais sensível. Mas queria muito acordar em um mundo onde notícias boas fossem motivo de comemoração, e não onde desgraças significassem apenas manchete ou mais exemplares vendidos.
Finalizando: naquela mesma segunda maldita, lá pelas 19 horas, percebo uma sombra parada as minhas costas. Quando me viro para ver quem era aquele “vodu”, dou de cara com o chefe, papel de pauta na mão e o desespero estampado na face:
- Pessoal, estou sem opção de manchete hoje... quem tem alguma coisa?
A bomba meio que vem para meu lado mas ele não curte o assunto que eu estava cobrindo. Aí, para fechar o dia, o comentário da colega sobre o infeliz que havia caído:
- Se pelo menos o cara tivesse morrido, dava uma manchete!
Definitivamente: jornalista é um ser muito estranho mesmo.

Um comentário:

Vanderson Santos disse...

Belo texto, Andréa! O melhor é que se trata do depoimento de alguém da área, que vivencia isso no cotidiano. Eu adoraria ser jornalista e ainda pretendo estudar para isso. Porém, espero trabalhar com temas mais "lights", como cinema, música, teatro...rs. Beijos e parabéns pelo blog!